Teatro de autores portugueses
-catálogo e textos múltiplos

Pranto da senhora caminho do Monte Calvário

Vai a virgem Nossa Senhora pranteando caminho do Monte Calvário e diz:

Fili mi Jesu, Jesu,
oh mi Jesu, fili mi,
quem me matasse por ti
por que nam morresses tu!

Ó vos omnes qui transitis
pola via d’amargura
chorai a desaventura
desta triste sunamitis,
sinti sua grã tristura.
Ó gentes chorai meu mal,
vede bem sua grandeza,
o cutelo de crueza
que corta com dor mortal
minh’alma com tal tristeza.

Ó judaica crueldade,
onde me levas meu bem?
Ó cruel Hierusalém,
mantador sem piedade
dos profetas que a ti vem,
que te fez o meu cordeiro,
filho do meu coração,
por que tanto sem rezão
condenaste ao madeiro
toda tua salvação?

Ó donas, vós que paristes
filhos que tanto amais,
por que tal dor nam vejais,
se dor de filho sentistes,
senti dores tam mortais.
Oh, que me levam a matar
todo meu bem e conforto
e o maior desconforto
é que hei medo de ficar
viva depois d’ele morto.

Como poderei viver
sem ti, que será de mim?
Ó triste, quam tarde vim
e quam cedo hei de ver
tua fim e minha fim!
Ó filho tam desejado,
em pureza concebido,
em virgindade parido,
em tal doçura criado
em mãos d’algozes metido!

Ó meu bem que nam te vejo,
e nam posso já comigo,
tam fracamente te sigo
quam fortemente o desejo
me leva a morrer contigo.

Oh, quem pudesse chegar
antes da fim um momento
a ver teu padecimento,
por que de ver-te matar
me mate teu sentimento!
Mas este mortal desmaio
tem cortado o coração
de tam forçosa paixão
que se quero andar caio,
esmorecida, no chão.

Ó donas encaminhai
esta mais triste das tristes
se meus males cá ouvistes
dizei-me por onde vai
o meu filho se o vistes.

Chegando a senhora ao pé do cadafalso onde estava o senhor crucificado, metido em um esparavel, sai ũa figura e mostra-lho, abrindo o esparavel, dizendo:
Ó mais fremosa e mais bela
que quantas no mundo são,
de ver tua grã  paixão
e tua mortal querela
se me quebra o coração!
Pois que vens com tanta pena
em busca do teu amado
sabe que é crucificado
quem nos salva e nos condena
vê-lo aqui condenado.

Aqui se deixa a senhora cair no chão sem dizer nada e depois já no cabo vem Nicodemus e Josef ab Arimatia pera sepultar o corpo, e adorando o senhor de giolhos diz Josef:
Ó filho de Deos eterno,
verbo divino encarnado,
tam sem culpa condenado
por nos salvar do inferno,
tam sem causa justiçado,
pois nam pode nossa sorte
servir teu merecimento
na vida nem no tormento
vimos servir-te na morte
com mortalha e moimento.

E despegando o senhor da cruz põe-no em o regaço da senhora e ela diz esta trova:
Oh cruel cutelo forte,
Oh crueza desmedida,
Oh mortal dor tam crecida,
ver morto e ver a morte
a vida de minha vida.
Ó morte, por que acrecentas
mais mortes com teus espaços?
Filho meu morto nos braços,
oh como nam arrebentas,
coração, em mil pedaços?

Já por derradeira, pede sam João licença à senhora pera enterrar o corpo, dizendo:
Um triste desconsolado
mal poderá consolar,
senhora, teu gram pesar,
porque sangue tam chegado
nam se roga em tal lugar.
Ver meu Deos e meu senhor
sofrer cruezas tamanhas,
ver tuas dores estranhas
me dão tam estranha dor
que me rasgam as entranhas.

Mas pois foi assi vontade
da divina providência,
tua virginal prudência
nesta dor sem piedade
tenha algũa paciência.
À tua mortal tristura
dá-lhe um pouco de vagar
e consente soterrar
o corpo na sepultura,
pois se nam pode escusar.

E tirando-lhe à senhora o corpo dos braços, diz esta trova:
Oh triste despedimento,
Oh ausência tam mortal,
ó meu bem, ó meu gram mal,
nam abasta sofrimento
pera poder sofrer tal!
Deixai-me também morrer,
entam em um moimento
ambos mortos dum tromento
nos enterrai, por nam ver
tam mortal apartamento.

E  entam levam o corpo metido no ataúde com Miserere mei Deus a fabordão  a enterrá-lo.