Teatro de autores portugueses
-catálogo e textos múltiplos

Barca do Inferno (1562)

Representa-se na obra seguinte ũa prefiguração sobre a regurosa acusação que os ĩmigos fazem a todas as almas humanas, no ponto que per morte de seus terrestes corpos se partem. E por tratar desta matéria põe o autor por figura que no dito momento elas chegam a um profundo braço de mar, onde estão dous batéis: um deles passa pera a glória, o outro pera o inferno. É repartida em três partes: de cada embarcação ũa cena. Esta primeira é da viagem do Inferno. Trata-se polas figuras seguintes: primeiramente, a barca do inferno, Arrais e Barqueiro dela, diabos. Barca do paraíso, Arrais e Barqueiros dela, anjos. Passageiros: Fidalgo, Onzeneiro, Joane, Sapateiro, Frade, Florença, Alcouviteira, Judeu, Corregedor, Procurador, Enforcado, quatro Cavaleiros. Esta prefiguração se escreve neste primeiro livro, nas obras de devação, porque a segunda e terceira parte foram representadas na capela, mas esta primeira foi representada de câmara, pera consolação da muito católica e santa rainha dona Maria, estando enferma do mal de que faleceu, na era do Senhor de 1517.
ARRAIS DO INFERNO
À barca à barca oulá
que temos gentil maré
ora venha o caro a ré.
COMPANHEIRO
Feito feito.
DIABO
Bem está.
Vai ali muit’ieramá
e atesa aquele palanco
e despeja aquele banco
pera a gente que virá.

À barca à barca u u
asinha que se quer ir.
Oh que tempo de partir
louvores a Berzebuu.
Ora sus que fazes tu?
Despeja todo esse leito.
COMPANHEIRO
Em bon’ora logo é feito.
DIABO
Abaixa aramá esse cu.

Faze aquela poja lesta
e alija aquela driça.
COMPANHEIRO
Oh oh caça oh oh iça.
DIABO
Oh que caravela esta.
Põe bandeiras que é festa
verga alta âncora a pique.
Ó precioso dom Anrique
cá vindes vós que cousa é esta?

FIDALGO
Esta barca onde vai ora
que assi está apercebida?
DIABO
Vai pera a ilha perdida
e há de partir logo ess'hora.
FIDALGO
Pera lá vai a senhora?
DIABO
Senhor a vosso serviço.
FIDALGO
Parece-me isso cortiço.
DIABO
Porque a vedes lá de fora.

FIDALGO
Porém a que terra passais?
DIABO
Pera o inferno senhor.
FIDALGO
Terra é bem sem sabor.
DIABO
Quê? E também cá zombais?
FIDALGO
E passageiros achais
pera tal habitação?
DIABO
Vejo-vos eu em feição
pera ir ao nosso cais.

FIDALGO
Parece-te a ti assi.
DIABO
Em que esperas ter guarida?
FIDALGO
Que deixo na outra vida
quem reze sempre por mi.
DIABO
Quem reze sempre por ti
hi hi hi hi hi hi hi
e tu viveste a teu prazer
cuidando cá guarecer
porque rezem lá por ti.

Embarca ou embarcai
que haveis d’ir à derradeira
mandai meter a cadeira
que assi passou vosso pai.
FIDALGO
Que que que. E assi lhe vai?
DIABO
Vai ou vem. Embarcai prestes
segundo lá escolhestes
assi cá vos contentai.

Pois que já a morte passastes
haveis de passar o rio.
FIDALGO
Não há aqui outro navio?
DIABO
Não senhor que este fretastes
e já quando espirastes
me tínheis dado sinal.
FIDALGO
Que sinal foi esse tal?
DIABO
Do que vós vos contentastes.

FIDALGO
A estoutra barca me vou.
Ou da barca pera onde is?
Ah barqueiros não m’ouvis?
Respondei-me. Oulá ou.
Pardeos aviado estou
quant’a isto é já pior
que gericocins salvanor
cuidam cá que sou eu grou.

ANJO
Que mandais?
FIDALGO
Que me digais
pois parti tam sem aviso
se a barca do paraíso
é esta em que navegais.
ANJO
Esta é. Que lhe buscais?
FIDALGO
Que me leixeis embarcar.
Sou fidalgo de solar
é bem que me recolhais.

ANJO
Não s’embarca tirania
neste batel divinal.
FIDALGO
Não sei por que haveis por mal
que entre minha senhoria.
ANJO
Pera vossa fantesia
mui pequena é esta barca.
FIDALGO
Pera senhor de tal marca
não há ‘qui mais cortesia?

Venha a prancha e o atavio
levai-me desta ribeira.
ANJO
Não vindes vós de maneira
pera entrar neste navio
essoutro vai mais vazio
a cadeira entrará
e o rabo caberá
e todo vosso senhorio.

Ireis lá mais espaçoso
vós e vossa senhoria
contando da tirania
de que éreis tam curioso.
E porque de generoso
desprezastes os pequenos
achar-vos-eis tanto menos
quanto mais fostes fumoso.

DIABO
À barca à barca senhores.
Oh que maré tam de prata
um ventezinho que mata
e valentes remadores.
Cantando:
Vos me veniredes a la mano
a la mano me veniredes
e vós veredes
peixes nas redes.

FIDALGO
Ao inferno todavia
inferno há i pera mi?
Oh triste enquanto vivi
nunca cri que o i havia
tive que era fantesia
folgava ser adorado
confiei em meu estado
e não vi que me perdia.

Venha essa prancha e veremos
esta barca de tristura.
DIABO
Embarque vossa doçura
que cá nos entenderemos.
Tomareis um par de remos
veremos como remais
e chegando ao nosso cais
nós vos desembarcaremos.

FIDALGO
Mas esperai-me aqui
tornarei à outra vida
ver minha dama querida
que se quer matar por mi.
DIABO
Que se quer matar por ti?
FIDALGO
Isto bem certo o sei eu.
DIABO
Oh namorado sandeu
o maior que nunca vi.

FIDALGO
Era tanto seu querer
que m’escrevia mil dias.
DIABO
Quantas mentiras que lias
e tu morto de prazer.
FIDALGO
Pera que é escarnecer
que nam havia mais no bem?
DIABO
Assi vivas tu amém
como te tinha querer.

FIDALGO
Isto quanto ò que eu conheço.
DIABO
Pois estando tu espirando
se estava ela requebrando
com outro de menos preço.
FIDALGO
Dá-me licença te peço
que vá ver minha molher.
DIABO
E ela por não te ver
despenhar-s’-á dum cabeço.

Quanto ela hoje rezou
antre seus gritos e gritas
foi dar glórias infinitas
a quem na desabafou.
FIDALGO
Quant’a ela bem chorou.
DIABO
E não há i choro d’alegria?
FIDALGO
E as lástimas que dezia?
DIABO
Sua mãe lhas ensinou.

Entrai meu senhor entrai
venha a prancha ponde o pé.
FIDALGO
Entremos pois que assi é.
DIABO
Ora agora descansai
passeai e sospirai
entanto virá mais gente.
FIDALGO
Oh barca como és ardente
maldito quem em ti vai.
Diz o Diabo ao Moço da cadeira:

Tu seu moço vai-te di
que a cadeira é cá sobeja
cousa qu’esteve na igreja
nam s’ há d’embarcar aqui.
Cá lha darão de marfi
marchetada de dolores
com tais modos de lavores
que estará fora de si.

À barca à barca boa gente
que queremos dar à vela
chegar ela chegar ela
muitos e de boa mente.
Chega um Onzeneiro e diz:
Oh que barca tam valente
pera onde caminhais?
DIABO
Oh que má hora venhais
Onzeneiro meu parente.

Como tardastes vós tanto?
ONZENEIRO
Mais quisera eu lá tardar.
Na safra do apanhar
me deu Saturno quebranto.
DIABO
Ora mui muito m’espanto
nam vos livrar o dinheiro.
ONZENEIRO
Nem tam sóis pera o barqueiro
nam me deixaram nem tanto.

DIABO
Ora entrai entrai aqui.
ONZENEIRO
Nam hei eu i d’embarcar.
DIABO
Oh que gentil recear
e que cousas pera mi.
ONZENEIRO
Ind’agora faleci
deixai-me buscar batel.
DIABO
Pesar de Jam Pimintel
por que nam irás aqui?

ONZENEIRO
E pera onde é a viagem?
DIABO
Pera onde tu hás d’ir.
Estamos pera partir
nam cures de mais linguagem.
ONZENEIRO
Mas pera onde é a passagem?
DIABO
Pera a infernal comarca.
ONZENEIRO
Dixe nam m’embarco eu nessa barca
estoutra tem avantagem.
Vai-se à barca do Anjo e diz:
Ou da barca oulá ou
haveis logo de partir?
ANJO
E onde queres tu ir?
ONZENEIRO
Eu pera o paraíso vou.
ANJO
Pois quant’eu bem fora estou
de te levar pera lá.
Essoutra te levará
vai pera quem t’enganou.

ONZENEIRO
Porquê?
ANJO
Porque esse bolsão
tomará todo navio.
ONZENEIRO
Juro a Deos que vai vazio.
ANJO
Nam já no teu coração.
ONZENEIRO
Lá me ficam de rondão
vinte e seis milhões nũa arca
pois que onzena tanto abarca
nam lhe dais embarcação?
Torna ao Diabo e diz:
Oulá ou demo barqueiro
sabeis vós no que m’eu fundo:
quero lá tornar ò mundo
e trazê-lo meu dinheiro.
Que aqueloutro marinheiro
porque me vê vir sem nada
dá-me tanta borregada
como arrais lá do Barreiro.

DIABO
Entra entra e remarás
nam percamos mais maré.
ONZENEIRO
Todavia.
DIABO
Por força é
que te pês cá entrarás
irás servir Satanás
pois que sempre t’ajudou.
ONZENEIRO
Oh triste quem me cegou.
DIABO
Cal-te que cá chorarás.
Entrando no batel diz ao Fidalgo:

ONZENEIRO
Santa Joana de Valdês
cá é vossa senhoria.
FIDALGO
Dá ò demo a cortesia.
DIABO
Ouvis? Falai vós cortês.
Vós Fidalgo cuidareis
que estais em vossa pousada?
Dar-vos-ei tanta pancada
c’um remo que arrenegueis.
Vem um Parvo e diz ao Arrais do Inferno:
Ou daquela.
DIABO
Quem é?
PARVO
Eu sou.
É esta naviarra nossa?
DIABO
De quem?
PARVO
Dos tolos.
DIABO
Vossa.
Entra.
PARVO
De pulo ou de voo?
Oh pesar de meu avô
soma vim a adoecer
e fui má hora morrer
e nela pera mi só.

DIABO
De que morreste?
PARVO
De quê?
Samica de caganeira.
DIABO
De quê?
PARVO
De cagamerdeira
má ravugem que te dê.
DIABO
Entra põe aqui o pé.
PARVO
Oulá não tombe o zambuco.
DIABO
Entra tolazo enuco
que se nos vai a maré.

PARVO
Aguardai aguardai lá.
E onde havemos nós d’ir ter?
DIABO
Ao porto de Lucifer.
PARVO
Como?
DIABO
Ò inferno, entra cá.
PARVO
Ò inferno? Ieramá.
Hiu hiu barca do cornudo
beiçudo beiçudo
rachador d’Alverca hu ha.

Capateiro da Candosa
antrecosto de carrapato
sapato sapato
filho da grande aleivosa.
Tua molher é tinhosa
e há de parir um sapo
chentado no guardanapo
neto da cagarrinhosa.

Furta cebolas hiu hiu
escomungado nas igrejas
burrela cornudo sejas
toma o pão que te caiu.
A molher que te fogiu
pera a ilha da Madeira
ratinho da Giesteira
o demo que te pariu.

Hiu hiu lanço-te ũa pulha
de pica na aquela
hiu hiu caga na vela
cabeça de grulha.
Perna de cigarra velha
pelourinho da Pampulha
rabo de forno de telha.
Chegando à barca da glória diz:
Ou da barca.
ANJO
Tu que queres?
PARVO
Quereis-me passar além?
ANJO
Quem és tu?
PARVO
Nam sou ninguém.
ANJO
Tu passarás se quiseres
porque em todos teus fazeres
per malícia nam erraste.
Tua simpreza t’abaste
pera gozar dos prazeres.

Espera entanto per i
veremos se vem alguém
merecedor de tal bem
que deva d’entrar aqui.
Vem um Sapateiro carregado de formas e diz na barca do inferno:
Ou da barca.
DIABO
Quem vem i?
Santo Sapateiro honrado
como vens tam carregado.
SAPATEIRO
Mandaram-me vir assi.

Mas pera onde é a viagem?
DIABO
Pera a terra dos danados.
SAPATEIRO
E os que morrem confessados
onde tem sua passagem?
DIABO
Não cures de mais linguagem
que esta é tua barca esta.
SAPATEIRO
Renegaria eu da festa
e da barca e da barcagem.

Como poderá isso ser
confessado e comungado?
DIABO
E tu morreste escomungado
e nam no quiseste dizer
esperavas de viver.
Calaste dez mil enganos
tu roubaste bem trinta anos
o povo com teu mister.

Embarca eramá pera ti
que há já muito que te espero.
SAPATEIRO
Digo-te que renam quero.
DIABO
Digo-te que si ressi.
SAPATEIRO
Quantas missas eu ouvi
não m’hão elas de prestar?
DIABO
Ouvir missa então roubar
é caminho pera aqui.

SAPATEIRO
E as ofertas que darão
e as horas dos finados?
DIABO
E os dinheiros mal levados
que foi da satisfação?
SAPATEIRO
Oh nam praza ò cordovão
nem à puta da badana
se é esta boa tranquitana
em que se vê Jan’Antão.

Ora juro a Deos que é graça.
Vai à barca do paraíso:
Ou da santa caravela
podereis levar-me nela?
ANJO
A carrega t’embaraça.
SAPATEIRO
Não há mercê que me Deos faça?
Isto u xiquer irá.
ANJO
Essa barca que lá está
leva quem rouba de praça.

Ó almas embaraçadas.
SAPATEIRO
Ora eu me maravilho
haverdes por gram peguilho
quatro forminhas cagadas
que podem bem ir chentadas
no cantinho desse leito.
ANJO
Se tu viveras dereito
elas foram cá escusadas.

SAPATEIRO
Assi que determinais
que vá coser ao inferno?
ANJO
Escrito estás no caderno
das ẽmentas infernais.
SAPATEIRO
Pois diabos que aguardais?
Vamos venha a prancha logo
e levai-me àquele fogo
pera que é aguardar mais?
Entra um Frade com ũa Moça pola mão e vem dançando, fazendo a baixa com a boca, e acabando diz o Diabo:
DIABO
Que é isso padre que vai lá?
FRADE
Deo gracias, sam cortesão.
DIABO
Sabeis também o tordião?
FRADE
É mal que m’esquecerá.
DIABO
Essa dama há d’entrar cá?
FRADE
Nam sei onde embarcarei.
DIABO
Ela é vossa?
FRADE
Eu nam sei.
Por minha a trago eu cá.

DIABO
E nam vos punham lá grosa
nesse convento sagrado?
FRADE
Assi fui bem açoutado.
DIABO
Que cousa tam preciosa.
Entrai padre reverendo.
FRADE
Pera onde levais gente?
DIABO
Pera aquele fogo ardente
que nam temeste vivendo.
FRADE
Juro a Deos que nam t’entendo.
E este hábito nam me val?
DIABO
Gentil padre mundanal
a Berzabu vos encomendo.

FRADE
Corpo de Deos consagrado
pola fé de Jesu Cristo
que eu nam posso entender isto
eu hei de ser condenado?
Um padre tam namorado
e tanto dado a virtude
assi Deos me dê saúde
que estou maravilhado.

DIABO
Nam façamos mais detença
embarcai e partiremos
tomareis um par de remos.
FRADE
Nam ficou isso na avença.
DIABO
Pois dada está já a sentença.
FRADE
Pardeos essa seria ela
nam vai em tal caravela
minha senhora Florença.

Como por ser namorado
e folgar com ũa molher
se há um frade de perder
com tanto salmo rezado?
DIABO
Ora estás bem aviado.
FRADE
Mais estás bem corregido.
DIABO
Devoto padre e marido
haveis de ser cá pingado.

FRADE
Mantenha Deos esta coroa.
DIABO
Ó padre frei capacete
cuidei que tínheis barrete.
FRADE
Sabei que fui da pessoa.
Esta espada é roloa
e este broquel rolão.
DIABO
Dê vossa reverência lição
d’isgrima que é cousa boa.

FRADE
Que me praz. Dêmos caçada:
(Esgrime.)
entam logo um contra sus
um fendente ora sus
esta é a primeira levada.
Alevantai a espada
metei o diabo na cruz
como o eu agora pus
saí co a espada rasgada
e que fique anteparada
talho, largo, um revés
e logo colher os pés
que todo o al nam é nada.

Quando o recolher se tarda
o ferir nam é prudente
eia sus mui largamente
cortai na segunda guarda.
Guarde-me Deos d’espingarda
ou de barão denodado
mas aqui estou guardado
como a palha n’albarda.

Saio com mea espada
oulá guardar as queixadas.
DIABO
Oh que valentes levadas.
FRADE
Inda isto nam é nada.
Dêmos outra vez caçada:
contra sus ora um fendente
e cortando largamente
eis aqui a seista guarda.

Daqui se sai com ũa guia
e um revés da primeira
esta é quinta verdadeira
oh quantos daqui feria.
Padre que tal aprendia
no inferno há d’haver pingos?
Ah nam praza a sam Domingos
com tanta descortesia.

Prossigamos nossa história
nam façamos mais detença
dai cá mão senhora Florença
vamos à barca da glória.
Chega à barca da glória e diz:
Deo gracias há cá lugar
pera minha reverença
e a senhora Florença
polo meu há lá d’entrar.
PARVO
Andar muit’ieramá.
Furtaste esse trinchão frade.
FRADE
Senhora dá-me à vontade
que este feito mal está.

Vamos onde havemos d’ir
nam praza a Deos co a ribeira
eu nam vejo aqui maneira
senam enfim concrudir.
DIABO
Padre haveis logo de vir.
FRADE
Si tomai-me lá Florença
e cumpramos a sentença
ordenemos de partir.
Vem ũa alcouviteira per nome Brísida Vaz e chegando à barca do inferno diz:
Oulá da barca oulá.
DIABO
Quem chama?
BRÍSIDA VAZ
Brísida Vaz.
DIABO
Ea aguarda-me rapaz
por que nam vem ela já?
COMPANHEIRO
Diz que nam há de vir cá
sem Joana de Valdeis.
DIABO
Entrai vós e remareis.
BRÍSIDA VAZ
Nam quero eu entrar lá.

DIABO
Que saboroso arrecear.
BRÍSIDA VAZ
Nam é essa barca a qu’eu cato.
DIABO
E trazeis vós muito fato?
BRÍSIDA VAZ
O que me convém levar.
DIABO
Que é o que haveis d’embarcar?
BRÍSIDA VAZ
Seiscentos virgos postiços
e três arcas de feitiços
que nam podem mais levar.

Três almários de mentir
e cinco cofres d’enleos
e alguns furtos alheos
assi em jóias de vestir
guarda-roupa d’encobrir
enfim casa movediça
um estrado de cortiça
com dez coxins d’embair.

A mor carrega que é
essas moças que vendia.
Daquesta mercadaria
trago eu muita à bofé.
DIABO
Ora ponde aqui o pé.
BRÍSIDA VAZ
Ui e eu vou pera o paraíso.
DIABO
E quem te dixe a ti isso?
BRÍSIDA VAZ
Lá hei d’ir desta maré.

Eu som ũa mártele tal
açoutes tenho eu levados
e tormentos soportados
que ninguém me foi igual.
Se eu fosse ao fogo infernal
lá iria todo o mundo.
A estoutra barca cá em fundo
me vou eu que é mais real.
E chegando à barca da glória diz ao Anjo:

Barqueiro mano meus olhos
prancha a Brísida Vaz.
ANJO
Eu nam sei quem te cá traz.
BRÍSIDA VAZ
Peço-vo-lo de giolhos.
Cuidais que trago piolhos?
Anjo de Deos minha rosa
eu sou Brísida a preciosa
que dava as moças òs molhos.

A que criava as meninas
pera os cónegos da sé.
Passai-me por vossa fé
meu amor minhas boninas
olhos de perlinhas finas.
E eu sou apostolada
angelada e martelada
e fiz obras mui divinas.

Santa Úrsula nam converteo
tantas cachopas com’eu
todas salvas polo meu
que nenhũa se perdeo.
E prouve àquele do ceo
que todas acharam dono
cudais que dormia eu sono?
Nem ponta e nam se perdeo.

ANJO
Ora vai lá embarcar
nam estês emportunando.
BRÍSIDA VAZ
Pois estou-vos alegando
o porque m’haveis de levar.
ANJO
Nam cures d’emportunar
que nam podes ir aqui.
BRÍSIDA VAZ
E que má hora eu servi
pois nam m’há d’aproveitar.

Ou barqueiros da má hora
ponde a prancha que eis me vou
e tal fada me fadou
que pareço mal cá fora.
DIABO
Ora entrai minha senhora
e sereis bem recebida
se vivestes santa vida
vós o sentireis agora.
Vem um Judeu com um bode às costas e diz ao Diabo:
Que vai lá ou marinheiro?
DIABO
Oh que má hora vieste.
JUDEU
Cuja é esta barca que preste?
DIABO
Esta barca é do barqueiro.
JUDEU
Passai-me por meu dinheiro.
DIABO
E esse bode há cá de vir?
JUDEU
O bode também há d’ir.
DIABO
Oh que honrado passageiro.

JUDEU
Sem bode como irei lá?
DIABO
Pois eu nam passo cabrões.
JUDEU
Eis aqui quatro tostões
e mais se vos pagará
por vida de Semifará
que me passeis o cabrão.
Quereis mais outro tostão?
DIABO
Nem tu nam hás de vir cá.

JUDEU
Por que nam irá o Judeu
onde vai Brísida Vaz?
Fala ao Fidalgo:
Ao senhor meirinho apraz?
Senhor meirinho irei eu?
DIABO
E ao Fidalgo quem lhe deu
o mando deste batel?
JUDEU
Corregedor coronel
castigai este sandeu.

Azará pedra meúda
lodo, chanto, fogo, lenha
caganeira que te venha
má corrença que t’acuda.
Por el Deu que te sacuda
com a beca nos focinhos
fazes burla dos meirinhos
dize filho da cornuda.

PARVO
Furtaste a chiba cabrão.
Pareceis-me vós a mim
carrapato d’Alcoutim
enxertado em camarão.
DIABO
Judeu lá te levarão
porque hão d’ir descarregados.
PARVO
E s’ele mijou nos finados
no adro de sam Gião.

E comia a carne da panela
no dia de nosso senhor
e mais ele salvanor
cada vez mija na aquela.
DIABO
Ora sus dêmos à vela
vós Judeu ireis à toa
que sois mui roim pessoa
levai o cabrão na trela.
Vem um Corregedor e diz chegando à barca do inferno:
Ou da barca.
DIABO
Que quereis?
CORREGEDOR
Está aqui o senhor juiz.
DIABO
Ó amador de perdiz
quantos feitos que trazeis.
CORREGEDOR
No meu ar conhecereis
qu’eles nam vem de meu jeito.
DIABO
Como vai lá o dereito?
CORREGEDOR
Nestes feitos o vereis.
DIABO
Ora pois entrai veremos
que diz i nesse papel.
CORREGEDOR
E onde vai o batel?
DIABO
No inferno vos poremos.
CORREGEDOR
Como à terra dos demos
há d’ir um corregedor?
DIABO
Santo descorregedor
embarcai e remaremos.

Ora entrai pois que viestes.
CORREGEDOR
Non est de regule juris não.
DIABO
Ita ita dai cá a mão
remareis um remo destes
fazei conta que nacestes
pera nosso companheiro.
Que fazes tu barzoneiro?
Faze-lhe essa prancha prestes.

CORREGEDOR
Oh renego da viagem
e de quem m’há de levar.
Há ‘qui meirinho do mar?
DIABO
Nam há cá tal costumagem.
CORREGEDOR
Nam entendo esta barcagem
nem hoc non potest esse.
DIABO
Se ora vos parecesse
que nam sei mais que linguagem.

Entrai entrai Corregedor.
CORREGEDOR
Ou videtis qui petatis
super jure majestatis
tem vosso mando vigor?
DIABO
Quando éreis ouvidor
nonne accepistis rapina?
Pois ireis pola bolina
onde nossa mercê for.

Oh que isca esse papel
pera um fogo que eu sei.
CORREGEDOR
Domine memento mei.
DIABO
Non es tempus bacharel
imbarquemini in batel
quia judicastis malícia.
CORREGEDOR
Semper ego in justicia
fecit e bem por nivel.

DIABO
E as peitas dos judeus
que vossa molher levava?
CORREGEDOR
Isso eu nam no tomava
eram lá percalços seus
non sunt peccatus meus
peccavit uxore mea.
DIABO
Et vobis quoque cum ea
nemo timuistis Deus.

A largo modo adqueristis
sanguinis laboratorum
ignorantes peccatorum
ut quid eos non audistis.
CORREGEDOR
Vós Arrais nonne legistis
que o dar quebra os penedos?
Os dereitos estão quedos
si aliquid tradidistis.

DIABO
Ora entrai nos negros fados
ireis ao lago dos cães
e vereis os escrivães
como estão tam prosperados.
CORREGEDOR
E na terra dos danados
estão os evangelistas?
DIABO
Os mestres das burlas vistas
lá estão bem fraguados.
Vem um Procurador e diz o Corregedor quando o vê:

Ó senhor Procurador.
PROCURADOR
Beijo-vo-las mãos juiz.
Que diz esse Arrais que diz?
DIABO
Que sereis bom remador.
Entrai bacharel doutor
e ireis dando à bomba.
PROCURADOR
E este barqueiro zomba
jogatais de zombador?

Essa gente que i está
pera onde a levais?
DIABO
Pera as penas infernais.
PROCURADOR
Dixe nam vou eu pera lá.
Outro navio está cá
muito milhor assombrado.
DIABO
Ora estais bem aviado
entrai muit’ieramá.

CORREGEDOR
Confessastes-vos doutor?
PROCURADOR
Bacharel sou dou-me ò demo.
nam cuidei que era estremo
nem de morte minha dor.
E vós senhor Corregedor?
CORREGEDOR
Eu mui bem me confessei
mas tudo quanto roubei
encobri ao confessor.

PROCURADOR
Porque se o nam tornais
nam vos querem absolver
e é mui mau de volver
depois que o apanhais.
DIABO
Pois por que nam embarcais?
CORREGEDOR
Quia esperamus in Deo.
DIABO
Imbarquemini in barco meo
pera que esperatis mais?
Vão-se à barca da glória e diz o Corregedor:

Ou Arrais dos gloriosos
passai-nos nesse batel.
ANJO
Ó pragas pera papel
pera as almas odiosos
como vindes preciosos
sendo filhos da ciência.
CORREGEDOR
Oh habeatis clemência
e passai-nos como vossos.

PARVO
Ou homens dos breviairos
rapinastis coelhorum
e pernis perdigatorum
e mijais nos campanairos.
CORREGEDOR
Anjos nam sejais contrairos
pois nam temos outra ponte.
PARVO
Beleguinis ubi sunte
ego latinus macairos.

ANJO
A justiça divinal
vos manda vir carregados
por que vades embarcados
nesse batel infernal.
CORREGEDOR
Oh nam praza a sam Marçal
co a ribeira nem c’o rio
cuidam lá que é desvario
haver cá tamanho mal.

Venha a negra prancha cá
vamos ver este segredo.
PROCURADOR
Diz um teisto do degredo.
DIABO
Entrai que cá se dirá.
Entram no batel dos danados e diz o Corregedor a Brísida Vaz:
Esteis muito aramá
senhora Brísida Vaz.
BRÍSIDA VAZ
Já siquer estou em paz
que nam me leixáveis lá.

Cada hora encoroçada:
justiça que manda fazer.
CORREGEDOR
E vós tornar a tecer
e urdir outra meada.
BRÍSIDA VAZ
Dizede juiz d’alçada
vem já Pero de Lisboa?
Levá-lo-emos à toa
e irá desta barcada.
Vem um Enforcado e diz o Diabo:

Venhais embora Enforcado
que diz lá Gracia Moniz?
ENFORCADO
Eu vos direi que ele diz:
que fui bem aventurado
que polos furtos que eu fiz
sou santo canonizado
pois morri dependurado
como o tordo na buiz.

DIABO
Entra cá e remarás
até as portas do inferno.
ENFORCADO
Nam é essa a nau que eu governo.
DIABO
Entra que inda caberás.
ENFORCADO
Pesar de sam Barrabás.
Se Garcia Moniz diz
que os que morrem como eu fiz
são livres de Satanás.

E disse que a Deos prouvera
que fora ele o enforcado
e que fosse Deos louvado
que em bôora eu nacera
e que o senhor m’escolhera
e por bem vi beleguins
e com isto mil latins
como s’eu latim soubera.

E no passo derradeiro
me disse nos meus ouvidos
que o lugar dos escolhidos
era a forca e o Limoeiro.
Nem guardião de mosteiro
nam tinha mais santa gente
como Afonso Valente
o que agora é cacereiro.

DIABO
Dava-te consolação
isso ou algum esforço?
ENFORCADO
C’o baraço no pescoço
mui mal presta a pregação.
Ele leva a devação
que há de tornar a jentar
mas quem há d’estar no ar
avorrece-lhe o sermão.

DIABO
Entra entra no batel
que pera o inferno hás d’ir.
ENFORCADO
E Moniz há de mentir?
Dixe-me: com sam Miguel
irás comer pão e mel
como fores enforcado.
Ora já passei meu fado
e já feito é o burel.

Agora nam sei que é isso
nam me falou em ribeira
nem barqueiro nem barqueira
senam logo ò paraíso.
E isto muito em seu siso
e que era santo o meu baraço
porém nam sei que aqui faço
ou se era mentira isto.

DIABO
Falou-te no purgatório?
ENFORCADO
Diz que foi o Limoeiro
e ora por ele o salteiro
e o pregão vitatório.
E que era muito notório
que aqueles deciprinados
eram horas dos finados
e missa de sam Gregório.

DIABO
Ora entra pois hás d’entrar
nam esperes por teu pai.
ENFORCADO
Entremos pois que assi vai.
DIABO
Este foi bom embarcar.
Eia todos apear
que está em seco o batel.
Vós doutor bota batel
Fidalgo saltai ò mar.
Vem quatro fidalgos Cavaleiros da Ordem de Cristo que morreram nas partes d’África e vem cantando a quatro vozes a letra que se segue:
À barca à barca segura
guardar da barca perdida
à barca à barca da vida.

Senhores que trabalhais
pola vida transitória
memória por Deos memória
deste temeroso cais.
À barca à barca mortais
porém na vida perdida
se perde a barca da vida.

DIABO
Cavaleiros vós passais
e nam me dizeis pera onde is?
CAVALEIRO
E vós Satam presomis?
Atentai com quem falais.
OUTRO CAVAL.
E vós que nos demandais?
Siquer conhecei-nos bem
morremos nas partes dalém
e nam queirais saber mais.

ANJO
Ó Cavaleiros de Deos
a vós estou esperando
que morrestes pelejando
por Cristo senhor dos céus.
Sois livres de todo mal
santos por certo sem falha
que quem morre em tal batalha
merece paz eternal.
Aqui fenece a primeira cena.